Bons socialistas podem usar peças caras

Outro dia eu estava lendo a GQ e me deparei com uma matéria muito interessante, e que me despertou vontade de discutir aqui.

Desde que eu me lembre, eu sou de esquerda e me defino como socialista. Na faculdade, os debates eram sempre quentes, porque eu costumava estar muito mais à esquerda nas minhas opiniões do que todos os colegas. E, por mim, tudo bem, porque eu acho que é assim que a gente cresce e aprende. Do mesmo jeito, eu sempre gostei de comprar boas peças de roupa e, principalmente, boas bolsas que terão vida longa no meu armário, o que significa, na maior parte do tempo, um investimento mais alto de dinheiro em uma única peça. Pra completar, eu sou Católica com cada fibra do meu ser, e defendo veementemente que Jesus Cristo foi o maior socialista que já existiu. Numa primeira e superficial avaliação, isso tudo pode parecer contraditório, e já sofri grandes condenações por conta desse meu jeitinho.

Esse post tem por objetivo explicar que gastar mais dinheiro em uma única coisa não me torna menos socialista do que quem usa roupas baratas. Na verdade, quem usa roupas baratas pode ser ainda menos socialista e ter um comportamento muito mais contraditório do que o meu porque, quanto mais baratas são as roupas, maior a probabilidade de que elas tenham sido confeccionadas a partir de uma mão de obra mal remunerada, explorada em fábricas espalhadas pelo mundo todo. De modo bastante simplificado, o socialismo nada mais é do que o controle democrático dos meios de produção, com a distribuição igualitária de renda para o proletariado.

Quem condena sumariamente o consumo de artigos mais caros pode ser culpado de saber o preço de tudo e o valor de nada. Explico: muitas marcas vendem excelentes produtos por um preço muito baixo, e deviam ser louvadas por fazê-lo, mas, na sua grande maioria, as peças mais baratas nas lojas são o resultado de enormes custos alheios ao consumidor final e, principalmente, ao dono da loja, que lucra – e muito – com cada venda. Na indústria têxtil, são inúmeras as denúncias de trabalho escravo, principalmente na China e na Índia, mas também no Brasil. Pra vender uma peça por um preço muito baixo, há que se questionar as duvidosas condições de trabalho no processo produtivo. Comprar em grandes lojas de fast fashion como Zara, Forever 21, H&M, C&A, Mango, entre tantas outras, significa financiar a desigualdade social no mundo: quanto mais um único ser humano acumula, menos as outras mais de 7 bilhões de pessoas terão para dividir.

A indústria de roupas de massa é uma das que mais polui no planeta, desde os pesticidas usados nos campos de algodão até os processos de lavagem e tingimento usados para criar um par de calças jeans. E, mesmo se o algodão é orgânico, o seu cultivo requer uma quantidade imensa de água: os têxteis usados para produzir uma t-shirt e um par de jeans podem consumir mais de 5 mil galões de água no seu processo produtivo, por exemplo. Para piorar, a tendência da moda rápida (ou fast fashion) significa que, hoje, os consumidores usam suas peças apenas metade do tempo em relação aos hábitos de 15 anos atrás – isso quando não usam só por um período minúsculo (geralmente, de 1 semana a 3 meses) em que “está na moda”, tornando-as peças descartáveis. Ademais, as roupas em si mesmas são fabricadas, em sua maioria, a partir de uma mistura de materiais, o que as torna produtos extremamente difíceis e custosos de se reciclar (poliéster, I’m talking to you). Fabricar roupas exige grande dispêndio de recursos ambientais: gasta-se dinheiro, água, luz, produtos químicos para tingir tecidos, mão de obra para produzir, transporte, armazenamento e venda, e dispor de todos esses recursos com roupa que é pouco usada ou descartada rapidamente é vergonhoso.

Por outro lado, peças que apresentam preços mais altos, inclusive os itens de luxo, são feitas à mão por artesões que receberão salário condizente com o que produzem, usando das habilidades que desenvolveram ao longo de muitos anos. Em uma fábrica italiana de ternos, por exemplo, nota-se claramente que as peças são feitas por verdadeiros e cuidadosos artistas. Gastar mil euros em uma única bolsa francesa ou em uma jaqueta italiana corresponde a um investimento nas pessoas que participaram do processo produtivo e na economia; investe-se na hereditariedade, no treinamento e, muitas vezes, em negócios pequenos, que começaram a partir do sonho de uma única pessoa, ou de uma família, que investiu tempo, dinheiro e habilidade para produzir uma peça de qualidade única e incomparável. O preço de uma peça assim não é um valor arbitrário, ou escolhido aleatoriamente, mas para representar o custo dos materiais, da mão de obra e da sua chegada ao mercado. É claro que nem todo mundo pode gastar altas quantias em uma única peça, mas uma jaqueta que custa, por exemplo, mil libras, não é imoral, ou torna condenável o indivíduo que faz uma compra desse tipo.

Quanto à reciclagem e aos impactos ambientais, a lã de um terno, por exemplo, é totalmente biodegradável, o que não se pode dizer sobre os ternos mais baratos, fabricados com materiais sintéticos e que servem, apenas, para enriquecer o grande empreendedor. Uma bolsa de couro feita à mão poderá ser usada por diversas gerações sem perder sua beleza ou qualidade, enquanto uma peça de poliuretano estragará com mais facilidade e alimenta fungos que poluem o meio ambiente. De que adianta comprar vários ternos de poliéster quando poderia gastar a mesma quantia em um único terno de lã de alta qualidade, corte impecável e grande durabilidade? De que adianta comprar 10 bolsas de poliuretano produzidas em massa e em condições duvidosas quando podia comprar, com a mesma quantidade de dinheiro, uma única bolsa de couro, feita à mão, com altíssima qualidade e durabilidade?

Consumo é diferente de consumismo. Consumo consciente também não significa simplesmente parar de comprar na Zara, na C&A ou em qualquer outra loja fast fashion. Consumo consciente significa deixar de comprar em excesso sem propósito ou necessidade, dentro do orçamento e, principalmente, atendendo às suas reais necessidades.

Meu orçamento do dia a dia só permite que eu compre roupas em fast fashion, e isso ficou ainda mais evidente depois que chegamos na Armênia, agravado pelo fato de que tenho um gosto e estilos muito bem definidos, o que revela dificuldade de encontrar peças que me agradam, mesmo nas grandes redes. Mesmo comprando em lojas desse tipo, eu não abro mão de escolher peças que tenham qualidade, que me convençam que terão durabilidade e versatilidade que justifiquem gastar o meu dinheiro com elas. Eu avalio as costuras e terminações, e prefiro peças fabricadas a partir de fibras naturais, como algodão, linho, lã, caxemira e seda, que costumam ter melhor caimento, toque mais agradável no corpo, duram mais e são mais fáceis de cuidar, além de serem mais elegantes. Ao mesmo tempo, noto que, principalmente no inverno rigoroso, é impossível fugir das fibras sintéticas: o poliéster se for escolhido com responsabilidade pelo fabricante, é muito durável e pode até ter altíssima qualidade, o que é bom para o consumidor e diminui os impactos ambientais por conta do seu tempo de uso, protegendo da neve, da chuva e do vento.

Aprendi que, além de saber do que é feito o tecido, é fundamental avaliar a funcionalidade, o caimento, a forma e a estrutura da peça; nas minhas compras, eu sempre busco o design mais atemporal e clássico, pois assim as chances de não enjoar da peça aumentam, e ela realmente terá vida longa na minha vida. Nessas horas, ajuda muito saber exatamente qual é o seu estilo pessoal e, principalmente, respeitar o tipo de vida que se leva.

Consumismo é comprar em excesso, comprar o que a gente não precisa de verdade: quem faz isso, sucumbe ao modelo de sociedade de consumo imposto pelo capitalismo. Não adianta, por exemplo, comprar um monte de roupas muito baratas e/ou de 2ª mão sob a desculpa do consumo consciente, porque isso per se não é consumo consciente, não. O que a gente não pode fazer, em hipótese alguma, é comprar o que não se ama, o que não vai ser usado, o que não desempenhará uma função clara na nossa vida, e, principalmente, comprar o que já se tem no armário. Qualquer coisa nessa vida que é comprada com base no argumento de que “está barato” é questionável e, eu diria, condenável. A sociedade capitalista em que vivemos nos induz o tempo todo a querer muitas coisas que a gente compra e não usa porque a grande verdade é que a gente não precisa de tanto. Eu passei a perceber isso com mais clareza principalmente depois que passei a priorizar a compra exclusiva do que tem muita qualidade e que não faz o coração bater forte só na loja.

Comprar uma coisa que a gente ama, que faz os olhos brilharem, que faz o coração bater forte todas as vezes que a gente usa e, acima de tudo, que nos traz alegria a cada uso é consumo consciente. A gente não precisa parar de comprar: o que a gente precisa é mudar a nossa lógica de consumo.

O que é mais importante para os socialistas: a distribuição igualitária de recursos ou a compra desenfreada de peças cuja produção é injusta, desumana e que prejudicam o meio ambiente?

Eu sei qual é a minha resposta pra essa pergunta.

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